sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Não posso infelizmente responder

cartas de leitores, só uma vez ou outra. Mas houve uma que misturava agressividade com palavras delicadas, tinha a chamada rude franqueza. Porque em uma de minhas colunas eu disse que preferiria ser antipática, ele diz: “Não vou cometer a leviandade de dizer que a acho simpática, cheia de altos e baixos, mas sou bastante vulgar para considerá-la linda.”
Diz que me conheceu mas tenho péssima memória e nem sequer consigo visualizar uma pessoa com esse nome. Diz: “Algumas coisas a tornam uma digna compatriota de Tchecov.  Outras a identificam com os daqui mesmo. Não de Cruz Alta ou Montes Claros, mas de Bagé ou Cascadura.” Meu filho, eu não me incomodo a mínima em ser Bagé ou Cascadura. E eu escrevo para quem quiser me ler. Você, Francisco, reclama demais, às vezes com razão, às vezes não. Não fico nem por um instante irritada: eu mesma me criei uma vida onde eu posso dizer tudo e ouvir tudo. Mas na sua carta fico sem saber vários trechos se sou a ofendida ou a elogiada.
Você reclama contra o meu desalento. Tem razão, Francisco, sou um pouco desalentada, preciso demais dos outros para me animar. Meu desalento é igual ao que sentem milhares de pessoas. Basta, porém, receber um telefonema ou lidar com alguém que eu gosto e minha esperança renasce, e fico forte de novo. Você na certa deve me ter conhecido num momento em que eu estava cheia de esperança.
Sabe como eu sei? Porque você diz que sou linda. Ora, não sou linda. Mas quando estou cheia de esperança, então de minha pessoa se irradia algo que talvez possa chamar de beleza.
Com toda razão você quer que, como Tchecov, eu escreva coisas engraçadas. Meu caro amigo, se escrevesse uma só página como Tchecov, eu seria uma grande mulher e não a desprotegida que sou. Não se incomode, Francisco, que minha hora de dizer coisas engraçadas vai chegar, sou mesmo de altos e baixos e aproveitarei um dia desses a forte onda do mar para andar na sua crista. A hora de rir há de chegar, Francisco. Já estou até impaciente por esta hora, o que é bom sinal: significa que a hora da esperança renovar-se, dentro de tantas cinzas, está perto. Por enquanto o meu jeito tem sido o de rir ou chorar, segundo meus altos e baixos.
Francisco, você me oferece seu “reino, um cavalo e um prato de lentilhas”. Considero-me a mais humilde serva de seu reino. Aceito também voar no seu cavalo no escuro porque, Francisco, é no escuro que você me deixou, você ainda não me ofereceu nenhuma pista para eu desabrochar na luz, e é disso que estou precisando. Mas você é bom e, mesmo decepcionado com minha pouca possibilidade atual de riso, me oferece essa iguaria sem par: um prato de lentilhas. Enfim alguém compreendeu que estou com fome.
Depois você me propôs uma coisa tão excepcional que me senti excepcional também. Se eu não aceitar é porque não posso mesmo. Pois você, com a simplicidade de quem tem riqueza dentro de si, me oferece o seguinte:
“Fujamos para Hong Kong ou para qualquer lugar com pouco aquém do além.”
E, como você diz, “que Deus nos proteja para todo o sempre”.
Amém, Francisco, e obrigada: quero tudo o que você tem a me dar. Há muito tempo não me dão um prato de lentilhas para esta fome arcaica que eu tenho. Com seu cavalo, Francisco, iremos tão longe! E de lá nunca voltaremos. Adeus, todo o mundo! Pois estou montada no cavalo belo que me levará à luz. Vou-me embora para a minha pasárgada, enfim!

Clarice Lispector
Nancy Sinatra - Two Shots Of Happy, One Shot Of Sad

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