quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Laços e punhais


Certa vez errei uma tecla do computador, e em lugar de “perdas” saiu “peras”.
Eu ia corrigir mas li de novo, achei muito mais bonito e deixei assim. Ninguém reclamou, nem os revisores.
Quem sabe um dos que estudam minha obra, preparando com a maior gravidade sua dissertação ou tese, pare, pense, morda a ponta da caneta ou fique olhando o computador, perplexo. Para depois discorrer filosoficamente sobre aquelas frutas perdidas num texto que nada tinha a ver com elas.
Dessa maneira acontecem mal-entendidos: amizades se perturbam, amores se rompem, pessoas se desencontram e magoam.
– Mas você tinha dito peras!
– Não, eu falei perdas.
– Peras...
– Perdas...
Perdeu-se nesse logo inconsistente um pedaço de vida, um brilho de entendimento se apagou.
– Eu ia dizer que você me faz “muita falta”, mas você entendeu “Você está em falta”... comigo, com a vida, consigo mesmo.
E passamos meia hora evitando nos olhar de frente, nesses momentos o universo esteve em desconserto, e nós desconcertados.
Quando eu era menina, certo dia num almoço fiquei observando a família à mesa, e aquelas pessoas tão conhecidas me pareceram umas enormes salsichas com tufos de pelos no alto, bolinhas se mexendo (chamadas olhos – ansiosos, tranquilos, amorosos ou hostis) e aquele furo no centro que se abria e fechava emitindo sons. A boca do beijo, do silêncio ou do insulto.
As outras salsichas também olhavam com seus botõezinhos de vidro brilhante, viravam-se para os lados, agitavam mãos ou abriam e fechavam seus furinhos-boca respondendo.
Palavras esvoaçavam sobre a mesa como bilhetes, sinais de fumaça ou borboletas perdidas. Um falava, outro compreendia e devolvia sinais sonoros. Mas de repente alguém não ouviu direito: os olhinhos ficaram duros, os sons da boca estridentes, ou baixos mas furiosos.
Agitação na sala de jantar. Briga em família.
Então nem sempre que alguém dizia “flor” o outro pensava “flor”? E podia entender “pedra”? Em lugar de enviar sobre a mesa palavras-borboleta, jogavam palavras-pedra?
Nada era simples. O mundo se desarrumava um pouco por causa desses mal-entendidos.
Até ali, para mim palavras eram objetos mágicos: agora via que podiam ser traiçoeiros. Belos de olhar, mas duros, com arestas cortantes, caramelos de vários sabores que eu deixava rolar na boca com delícia, porém a gente podia se engasgar, até morrer.
Não era só prazer a linguagem: pêras, perdas, fazer falta, estar em falta ou sentir falta. Desacordo, desconserto.
Ambivalentes como nós, palavras preparam armadilhas ou abrem portas de sedução. Embalam ou derrubam, e enredam em doces laços, ou nos matam dolorosamente – como punhais.

Lya Luft
Chet Faker - Terms and Conditions

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