quinta-feira, 30 de outubro de 2014

O cão e o lobo


Um lobo muito magro e faminto, todo pele e ossos, pôs-se um dia a filosofar sobre as tristezas da vida. E nisso estava quando lhe surge pela frente um cão - mas um cão e tanto, gordo, forte, de pêlo fino e lustroso.
Espicaçado pela fome, o lobo teve ímpeto de atirar-se a ele. A prudência, entretanto, cochichou-lhe ao ouvido: - "Cuidado! Quem se mete a lutar com um cão desses sai perdendo."
O lobo aproximou-se do cão com toda a cautela e disse:
- Bravos! Palavra de honra que nunca vi um cão mais gordo nem mais forte. Que pernas rijas, que pêlo macio! Vê-se que o amigo se trata...
- É verdade! - respondeu o cão. - Confesso que tenho tratamento de fidalgo. Mas, amigo lobo, suponho que você pode levar a mesma vida que levo.
- Como?
- Basta que abandone esse viver errante, esses hábitos selvagens e se civilize, como eu.
- Explique-me lá isso por miúdo - pediu o lobo com um brilho de esperança nos olhos.
-É fácil. Eu apresento você ao meu senhor. Ele, está claro, simpatiza-se e dá a você o mesmo tratamento que dá a mim: bons ossos de galinha, restos de carne, um canil com palha macia. Além disso, agrados, mimos e toda hora, palmadas amigas, um nome.
- Aceito! - respondeu o lobo. - Quem não deixará uma vida miserável como esta por uma de regalos assim?
- Em troca disso - continuou o cão - você guardará o terreiro, não deixando entrar ladrões nem vagabundos. Agradará ao senhor e à sua família, sacudindo a cauda e lambendo a mão de todos.
- Fechado - resolveu o lobo e emparelhando-se com o cachorro partiu a caminho da casa. Logo, porém, notou que o cachorro estava de coleira.
- Que diabo é isso que você tem no pescoço?
- É a coleira.
- E para que serve?
- Para me prenderem à corrente.
- Então não é livre, não vai para onde quer, como eu?
- Nem sempre. Passo às vezes vários dias preso, conforme a veneta do meu senhor. Mas que tem isso, se a comida é boa e vem à hora certa?
O lobo entreparou, refletiu e disse:
- Sabe do que mais? Até lgo! Prefiro viver magro e faminto, porém livre e dono do meu focinho, a viver gordo e liso como você, mas de coleira ao pescoço. Fique-se lá com a sua gordura de escravo que eu me contento com a minha magreza de lobo livre.
E afundou no mato.

Monteiro Lobato, Fábulas
The Killers - Tranquilize ft. Lou Reed

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