
Começou com um dente perdido... e acabou numa descoberta inesperada.
Um dia pela manhã, no ano passado, minha filha Laurel desce as escadas com um vestido de seda rosa, sapatos de plásticos vermelhos de salto alto e cintilantes asas multicoloridas. Trazia uma varinha na mão. "Você acha que a fada dos dentes vem hoje à noite?", Perguntou, referindo-se à tradição de colocar dinheiro sob o travesseiro da criança, em "troca" do dente que ela perdeu.
A fada dos dentes nunca apareceu na minha infância. Mas, comecei uma série de consultas ao dentista que me trouxeram recordações enterradas havia muito.
Era um problema de reabsorção, distúrbio que faz com que o dente se fragmente e se dissolva. Por fora parece são, mas por dentro está doente. Muitas vezes o problema está associado a um traumatismo, podendo manifestar-se anos mais tarde.
"Você machucou o dente quando era criança?, perguntou ele.
Lembrei-me de um incidente durante um jogo de beisebol, quando tinha uns 12 anos. Eu, de pé no campo, levantando as mãos e vendo a bola vir na minha direção.
Foi o que contei a ele. E não pensei mais a respeito até visitar meu irmão, semanas depois, com um dente provisório na boca. "Esse seu problema foi causado por um traumatismo?" Perguntou meu irmão, arregalando os olhos.
Sua expressão assustada trouxe-me a recordação: lábios rachados, batom cor-de-laranja, a boca aberta enquanto a mão direita atinge meu maxilar. Não sei quantas vezes minha mãe me bateu. Numa ocasião chegou a cuspir em mim.
Depois do divórcio de meus pais, passei a adolescência tomando conta de meu irmão. Nós nos acostumamos a ver a mamãe berrando do alto da escada. Certa madrugada, acordei e a encontrei junto de mim, na minha cama, abrindo e fechando uma tesoura. "Que tal eu cortar todo o seu cabelo?", disse ela.
Depois disso passei a fazer uma barricada na minha porta à noite.
Os médicos que a trataram nunca me disseram o diagnóstico, tampouco a ajudaram a escapar do mundo apavorante que habitava.
Havia décadas que ela me batera. Por que meu dente esperou tanto para morrer?
Existe a memória consciente e a memória corporal. Meu corpo não me deixava esquecer. Mas pensar em minha mãe me fazia querer esconder essas recordações debaixo de um travesseiro, para que ninguém as visse.
Quando me casei, a questão de ter filhos me preocupava muito. Eu me perguntava se o ato de dar à luz e cuidar de meus filhos não me levaria a perder o controle, tal qual minha mãe, com o modelo que tivera. Será que toda a tristeza e o terror que eu sentira passariam para meus filhos, tornando-se parte de sua natureza?
Esses temores voltaram na noite em que Laurel foi se deitar, aguardando a fada dos dentes. Entrei em seu quarto na ponta dos pés, para colocar moedas debaixo de seu travesseiro, e me demorei um instante, olhando o corpinho esguio relaxado no sono, o rosto que combinava duas famílias numa só. Apesar do receio de despertá-la, não resisti e toquei-lhe os cabelos compridos.
Fiquei ali sentada ao lado dela, alisando aquelas mechas sedosas. E aos poucos foi tomando conta de mim a consciência de que meus filhos também terão memórias corporais. Em algum lugar recôndito, meu filho vai guardar a lembrança de minhas mãos segurando-o com firmeza na banheira, deixando-o brincar e espalhar a água sem medo. Minha filha vai lembrar-se da brisa em seu rosto quando ela pulava de alegria em nosso jardim e eu girava de mãos dadas com ela.
Esses atos de ternura e amor rompem o ciclo antigo e iniciam um novo. Coloquei minhas recordações debaixo do travesseiro. Em seu lugar foi deixada uma dádiva: a certeza de que mil beijos de boa-noite ficarão guardados nos ossos de meus filhos.
Hallie Scott
Gilberto Gil - Não chores mais
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